segunda-feira, 16 de julho de 2012

No princípio


No princípio da autoridade do Rei
A Lâmpada da Escuridão
gravou um vazio na Luminescência Divina...
Zohar

Nosso entendimento sobre Deus, o Supremo Criador, o Grande Arquiteto do Universo, é de uma unidade perfeita, sem fronteiras e, em muitas filosofias religiosas, a Trindade Suprema. Porém, isso não significa que Deus não contenha inteligências, aspectos, arquétipos, em si mesmo. A unidade perfeita é tida de forma análoga a nossa observação da luz branca: embora todas as cores visíveis a integrem, ela é percebida como perfeita e harmônica unidade.



Para a cabala, tentar definir Deus é diminuir sua plenitude. As palavras e atributos que tentarmos associar ao Criador são por demais débeis para descrevê-lo. Por isso, é comum autores denominá-lo por nada, que deve ser compreendido como: nada que se possa conceber.

Desta forma, para representar este nada, quando utilizam de figuras e esquemas, alguns autores mostram a criação envolta pela cor preta. O sentido disto é induzir o estudante a ter a área em negro como uma região oculta, invisível aos nossos conceitos.

Neste sentido, para uma evolução didática da minha apresentação da cabala, eu fiquei inclinado a colocar um retângulo negro no início desta seção. Porém, num trecho onde sequer abordei algo remotamente similar à criação, este retângulo poderia dar uma ideia de “limite” até então indesejada.

Quando o estudante de cabala se remete a esse campo de abstração, deve esquecer por completo quaisquer conceitos, inclusive os de espaço e de tempo.

Estas dimensões do universo físico, como mostra a ciência moderna, são interdependentes, além de interagirem com a matéria e a energia. Imaginar Deus em um espaço e tempo, ainda que infinitos, é o submeter à natureza física desses entes, que são, supostamente, sua criação.

Na tradição judaica da cabala, o que é “visto” de Deus pela sua criação é denominado de Ên Sof, literalmente “o infinito”. Nesta mesma tradição, uma qualidade singular é aplicada a Deus: Ser. Enquanto a criação é passível de mudança, Deus simplesmente é.

Importante saber que a palavra ”visto”, no parágrafo anterior, está entre aspas para que o leitor lembre que estamos usando conceitos rudimentares demais para explicar algo profundamente sublime. Fazer tais analogias é bem mais difícil do que tentar explicar a Nero - se fosse possível encontrá-lo a sua época, em Roma pré-incêndio - como um celular funciona. Isto posto, alerto a você que uma possível descrição em sequência, ou cronológica, por vezes, que eu venha a fazer sobre a criação é mero recurso didático. A existência do próprio tempo ainda está por demais longe desta fase que explano.

Tudo aquilo que existe no universo que partilhamos, bem como em outros níveis existentes na criação, é formado a partir da perfeição, do Criador. Não devemos restringir Deus à mera soma e integração de tudo que existe na criação: Ele está bem além. Por si só, a existência do Criador não é restrita a limites em qualquer aspecto.

Um aparente problema desponta aqui: na sua perfeição, alterar sua natureza para que algo diferente de si (a criação) viesse a existir, seria corromper seu estado de simetria absoluta. Uma mudança resulta em tornar-se algo que ainda não é, o que conforma um contrassenso na natureza daquele que atribuí como a definição do Ser.

Todavia, eu afirmei que a existência de tudo aquilo que percebemos no nosso universo é originada em Deus e por Ele. Em termos físicos ou mentais, a assimetria é patente em nossas experiências. Ela permite percebermos a passagem do tempo, o movimento das coisas, os limites, dentre outros aspectos. Particularmente, tomo nosso cosmo como o reino da assimetria.

Do exposto, a assimetria tem de existir também no Criador, afinal não podemos admitir existência fora do Ser. Isso é até fácil de induzir, considerando o primeiro parágrafo desta seção: se não existisse assimetria, sequer poderíamos falar que Deus é uma unidade perfeita, pois uma unidade requer partes. Se existem partes, ainda que imperceptíveis, então existe assimetria (ao menos em potencia).

Em outras palavras, essa situação é análoga a uma pessoa de olhos escuros (gene dominante) que têm filhos com olhos claros (gene recessivo): o pai porta uma característica que não é percebida nele.

Recordemos o divulgado texto bíblico:
No princípio, criou Deus os céus e a terra.
Gênesis 1:1

Não é conhecimento vulgar, mas a expressão “No princípio”, em seu original, é “BeReshit” (hebraico). A importância deste destaque é que a tradução não é única para esse termo. Dentre outras possibilidades, a que fica melhor moldada ao desenvolvimento que venho fazendo até então, é “Na mente única/universal”. Resh, a raiz da expressão, também significa: cabeça, ou mente. Este mesmo conceito foi denominado, em grego, por Logos.

Bom, todo este texto se baseia na defesa de que vivemos numa realidade mental. Nada mais natural, então, que eu afirme que a criação se dá na mente de Deus. Isto me afasta da polêmica de macular a perfeição divina, dentre outros problemas, ao supor uma alteração da natureza do Ser.

Outra conveniência da defesa dessa interpretação é que o conceito de assimetria, na mente maior, passa a fazer o papel de filtro, um seletor, um ângulo particular de interpretação, daquilo que é ou não possível, ou conveniente, de existir em um contexto profundamente ressoante a esse arquétipo. A assimetria permite entendermos, ainda que de forma imprecisa, como seria Deus se fosse finito.

Esta forma de conceber o “nascimento” da criação a que me referi é a primeira quebra de simetria.

Esta quebra de simetria está presente no Sefer Ietsirá, que usa a palavra hebraica chacac - cujo significado, no texto traduzido, é gravou - para explicar o processo. A importância de citar esta expressão é justificada quando se interpreta a gravação como era realizada nos primeiros tempos: a retirada de material, como, por exemplo, quando sucos eram abertos em uma estrutura de argila paar que formassem letras (ou gravuras).

Para possibilitar que uma criatura venha à existência, Deus tem que gravar em si, no Ser, esta criatura. Como o Criador, em sua natureza plena, é incompatível com a criação, limitada e finita. O Zohar apresenta esse “nascimento” através da noção de “constrição” (Tsimtsum, em hebraico): a remoção do Criador de parte(s) de si (filtragem) permite a existência da criação.

A diferença das energias envolvidas no processo descrito aqui pode ser comparado, de forma grosseira, com a tentativa de tornar possível a existência do planeta Terra, e toda a vida que ela carrega, na mesma região do espaço ocupado pelo Sol (uma estrela). A vida em nosso mundo é inteiramente dependente do astro rei. Porém, a distância ideal que a Terra se encontra do Sol permite que não haja uma calcinação nem um congelamento do nosso planeta. Expor a Terra à natureza plena e direta do núcleo solar inviabiliza a existência do planeta: ele se desintegra. Portanto, só um equilíbrio delicado mantém este ecossistema que fazemos parte.

Dada a primeira quebra de simetria, o que se originou desta? Temos o que os cabalistas chamam por Universo, Olam ou Mundo de Atsilut.

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