domingo, 25 de novembro de 2012

O que ocorre em uma medição, segundo as interpretações da mecânica quântica.

Uma abordagem primária deste tema foi feita, de forma simplista, no meu texto O Enigma da Medição na Mecânica Quântica, neste blog. No presente artigo, pretendo fazer uma abordagem mais abrangente, mas resumida, sobretudo à luz explanações de textos do professor Osvaldo Pessoa Jr.
Uma apresentação mais completa (sobre física quântica) pode ser encontrada em [1] ou artigos do mesmo autor na Internet (link). 
A abordagem resumida deste texto, indicada no primeiro parágrafo, se dá devido ao foco ser como interpretações da mecânica quântica explicam a mudança do quântico para o clássico em determinados eventos: de uma descrição feita pela equação de Schrodinger (em que há uma multiplicidade de estados fisicamente viáveis, ou seja, um conjunto de possibilidades exequíveis, uma onda de possibilidades) para o que é efetivamente medido (apenas uma das possibilidades é verificada, um comportamento corpuscular) – conhecido como redução de estado ou colapso da função de onda (de forma realista ou positivista). Além disso, e descrito como algumas das interpretações descrevem essa “propriedade” na medição da experiência da escolha retardada.

(Figura extraída do livro O Tecido do Cosmo:. O espaço, o tempo e a textura da realidade, de Brian Greene, editora Companhia das Letras)

                a) Colapso da Função de Onda: Wener K Heisenberg explica que “cada determinação de posição reduz o pacote de onda de volta a sua extensão original”. A onda de probabilidade, assumida nesta interpretação como a descrição de algo físico, expande-se até o momento em que uma medição é feita. Daí, nas imediações de onde foi detectada a partícula, a onda se concentra, “exibindo” o potencial de 100% nestas mesmas imediações, enquanto em todas as outras posições, instantaneamente, o restante da onda probabilística tem seu valor reduzido à zero. Esta noção de “instantaneamente” é uma propriedade denominada por não localidade, um efeito não local em que, não interessa a distância de dada parte da frente de onda em relação à posição em que a partícula foi medida: fora da posição medida, a onda assume potencial nulo.
                Paul Dirac (em 1928) afirma: “Pode-se dizer que a natureza escolhe aquele dentre os estados que convém (...) A escolha, uma vez feita, é irrevogável e afetará todo o estado futuro do mundo”. Heisenberg critica a interpretação de que a natureza faz a escolha nos seguintes termos: “Eu diria, preferencialmente, conforme fiz em meu último artigo, que o próprio observador faz a escolha, pois é só no momento em que a observação é feita que a ‘escolha’ se torna uma realidade física  e que a relação das fases nas ondas, o poder de interferência, é destruída.”.
                Assim sendo, por exemplo, no caso da experiência da escolha retardada, o fato de colocar e ligar um detector (ver figura 7.2) nas possíveis trajetórias do fóton (ou elétron) permite o observador saber por qual caminho passa esta partícula, e, neste momento, ocorre à redução de estado e a medição é concluída. Numa análise mais abrangente, ao se ligar o detector, pode-se dizer que o cientista prepara o experimento de acordo com um comportamento esperado condizente com uma partícula clássica. Caso o detector não esteja ligado, o experimento está preparado para verificar um comportamento de onda.
                b) Muitos Mundos: a interpretação dos estados relativos de Everett (1957), ou muitos mundos, postula que todo o universo pode ser descrito por uma função e onda. Assim, no momento de uma dada medição, há um desdobramento do universo, de forma que cada observador (o pesquisador se desdobra junto com o universo, obviamente), que estará presente nessas “realidades”, registra em sua memória apenas um dos resultados possíveis (os estados mentais, as informações na consciência do observador, também estão em sobreposição, também exibem um conjunto de estados possíveis segundo a observação a ser feita). Como não há troca de informação entre os “mundos”, o observador fica com a impressão de que somente o resultado que ele presenciou se tornou uma realidade.
            Retomando o caso da experiência da escolha retardada, o fato de colocar e ligar um detector (ver figura 7.2) faz com que o universo “bifurque” em duas realidades, quebrando a sobreposição dos dois caminhos possíveis. Em uma delas, o detector é acionado, indicando que a partícula passou pelo mesmo. Na outra, o detector não emite qualquer sinal, indicando que a partícula passou pelo outro caminho. 
                c) Transacional de Cramer (1986): essa variação de interpretação é mais trabalhosa de se expor. Mas, resumidamente, pode-se dizer que há múltiplas emissões de ondas, tanto da parte que consideramos fonte em um experimento quanto do sensor com o qual a partícula venha a se chocar. Essas ondas são emitidas nos sentidos contrário e convencional do tempo (passado e futuro). Há uma série de cancelamentos das ondas de forma que só observamos aquela que vai da fonte até o detector. Essa série de emissões e interações é denominada de transações. Um aspecto “negativo” é a previsão de ondas vazias, ou ondas de energia zero.
Analisando o caso da experiência da escolha retardada, o detector ligado (ver figura 7.2)  ou parte do sensor neste, “troca” ondas com a fonte (transações), e ocorre o cancelamento de estados não observados.

d) Localizações Espontâneas:  neste caso, tudo ocorre muito parecido com a explicação dada no item a), menos no que concerne ao observador. A redução, neste caso, não se origina pela consciência do observador, mas, segundo o professor Osvaldo Pessoa Jr “é uma redução sem causa, uma redução espontânea, uma instabilidade intrínseca à natureza.”. Cada partícula teria uma probabilidade não nula, mas muitíssimo pequena, de entrar em colapso quando “livre”. Todavia, quando ocorrem interações, tal possibilidade de redução alcança valores extremamente elevados.
No caso da experiência da escolha retardada, o detector ligado (ver figura 7.2) implica numa ação sobre a onda em deslocamento que leva ao colapso espontâneo (a probabilidade de redução sobe sobremaneira).

2. Interpretação Corpuscular Realista: assume-se aqui que a medição é fidedigna, revelando a posição da partícula. Não há onda neste caso. Na medição, não há mudança de qualquer propriedade: a chamada redução de estado traduz um conhecimento mais preciso que o observador passa a ter sobre a partícula. Há muita dificuldade desta interpretação na explicação do comportamento ondulatório. Uma forma mais elaborada desta interpretação é conhecida como interpretação dos coletivos estatísticos
Todavia, Osvaldo Pessoa Jr alerta: “... o processo de medição não meramente seleciona um ‘sub-coletivo do coletivo inicial’, mas, ao fazer essa seleção, transforma as propriedades dos átomos [nota: partículas, como fótons e elétrons também, caberiam nesta descrição] do sub-coletivo (que a interpretação postula existir inicialmente), compondo assim um novo coletivo com propriedades não contidas no sub-coletivo inicial (devido, poderíamos dizer, a um distúrbio provocado pelo aparelho no objeto quântico ...).”.
Essa interpretação, como já mencionado, tem dificuldades na interpretação de fenômenos ondulatórios. Para a experiência da escolha retardada (ver figura 7.2)  a dificuldade de explicação aumenta em relação à descrição da quebra de interferência. Osvaldo Pessoa Jr explana: “Esta visão já tem dificuldades em explicar a interferência para um elétron ou fóton único, quanto mais para explicar o presente problema! Os detectores simplesmente revelam as posições pré-existentes das partículas. Mas por que a interferência desaparece?” Note que quando o detector está ligado, mesmo que a partícula vá pelo caminho em que não há detector, há alteração no “fenômeno” do movimento do fóton, pois não é apresentado o padrão de interferência.

3. Interpretação Dualista Realista: a medição é vista como mera detecção da partícula que é conduzida pela onda piloto. Novamente, explica Osvaldo Pessoa Jr “David Bohm ressalva que o ‘potencial quântico’, que corresponde às ondas em seu modelo dualista, sofre ‘flutuações violentas e extremamente complicadas’ durante a interação do objeto quântico com o aparelho de medição, afetando o momento da partícula e consequentemente sua posição final.”.
No experimento da escolha retardada (ver figura 7.2)  uma possível elucidação é que, uma vez que a onda guia segue por ambos os caminhos, o detector ligado provoca um distúrbio imprevisível, dependente do medidor, na onda piloto (na “parte” desta) que caminha pela trajetória coberta pelo detector. Daí, quando os dois ramos da onda (que seguiu por ambos os trajetos) se encontram novamente, cada parte se comportando como uma onda distinta (devido à perturbação em um dos “ramos”) e, em consequência, pode haver todo tipo de interferência. O padrão de interferência aleatório para cada detector resulta, em média, em 50% de possibilidade para cada detector medir uma partícula. Assim sendo, é a ação do  detector que provoca a perda de coerência (sobreposição de estados que possibilita exibir o padrão de interferência).

4. Interpretação da Complementaridade: o aparelho de medição causa um distúrbio incontrolável sobre o objeto quântico, ocasionando uma redução brusca e imprevisível do estado quântico durante a medição propriamente dita. Assim, pode-se dizer que quando há tal distúrbio, o fenômeno é corpuscular. Não havendo o mesmo, o fenômeno é ondulatório.
Em consequência, na experiência da escolha retardada (ver figura 7.2) o detector, uma vez ligado, interage com a partícula, seja em que caminho for, e isso provoca a redução. Assim, tem-se um fenômeno corpuscular (detector ligado).

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[1]  Conceitos da Física Quântica, Osvaldo Pessoa Jr, volumes 1 e 2, Editora Livraria da Física.

domingo, 18 de novembro de 2012

Realismo e Positivismo - Segunda parte


Texto apresentado no capítulo XIV do livro Conceitos de Física Quântica, volume I, escrito por Osvaldo Pessoa Jr, Livraria da Física.
Uma síntese, feita pelo mesmo autor, pode ser lida na página deste link.

PARTE 2 (leia a PARTE 1)


O Realismo Científico

Agora nos concentraremos na interpretação realista de uma teoria física, que inclui três afirmações básicas: 1) Realismo ontológico: existe uma realidade física que independe do conhecimento e da percepção humana. 2) Realismo científico: As proposições de uma teoria têm “valor de verdade”, isto é, são ou verdadeiras ou falsas, de acordo com a teoria da verdade por correspondência. Assim, uma teoria física serve para “explicar” fenômenos em termos da realidade física subjacente, e não apenas para prevê-los. 3) Realidade dos termos teóricos: a teoria pode conter “termos teóricos” que se referem a entidades físicas que não são diretamente observadas.

Além dessas características, costuma-se adicionar mais três afirmações para uma interpretação realista [99]: 4) Realismo metodológico: atingir a verdade é a meta principal da ciência. 5) Realismo convergente (K. Popper): as teorias físicas se aproximam cada vez mais da verdade, sem talvez nunca atingi-la de maneira completa. 6) Inferência para a melhor explicação: a melhor explicação para o sucesso prático da ciência é a suposição de que as teorias científicas são de fato aproximadamente verdadeiras.
A negação de uma ou outra das teses expostas acima constitui formas de antirrealismo, no contexto de teorias científicas. O relativismo nega que existam verdades únicas a serem descobertas pela ciência (anarquismo epistemológico de P. Feyerabend), sendo tudo fruto de uma negociação no âmbito das comunidades científicas (T. Kuhn, nova sociologia da ciência). Esta concepção está por trás da “verdade pragmática” que se opõe à verdade por correspondência. [100]
Uma negação do realismo científico é também feita pelo instrumentalismo, que pode ser “forte” ou “fraco”. O instrumentalismo forte nega que as teorias científicas tenham valores de verdade, e que elas expliquem uma realidade subjacente aos dados experimentais. Teorias seriam meramente esquemas linguísticos que permitem fazer previsões sobre observações, e que organizam estas de maneira econômica.

Já um instrumentalismo fraco não nega que sentenças teóricas (relativas a entidades não observáveis) tenham valores de verdade, mas nega que isto tenha qualquer importância na ciência (negando a tese 4). O que seria importante seria a solução de problemas (L. Laudan) ou a adequação empírica (B. van Fraassen).

A negação da tese 3 recai no descritivismo, que está associada ao positivismo [100a]. Uma maneira de negar o realismo convergente (tese 5) é o convencionalismo, defendido na passagem do século por H. Poincaré, segundo o qual a forma particular da teoria adotada tem diversos elementos convencionais, já que outras teorias empiricamente equivalentes são possíveis. 


Antirrealismo na Física Quântica
O antirrealismo que está associado à Mecânica Quântica envolve pelo menos três níveis epistemológicos: i) no nível de teoria científica, o instrumentalismo afirma que a Mecânica Quântica não passa de um instrumento para fazer previsões experimentais; ii) no nível da essência do conhecimento, o idealismo afirma que a consciência humana tem um papel importante na determinação do estado do objeto; iii) no nível do significado ou da origem do conhecimento, o positivismo nega que faça sentido afirmar a existência de entidades não observáveis ou afirmar proposições não verificáveis.

Na discussão sobre realismo científico, tem-se declarado que “o realismo morreu, quem o matou foi a Física Quântica” (A. Fine, 1982). Não examinaremos em detalhes, aqui, a viabilidade das interpretações realistas da Mecânica Quântica, mas queremos apenas sublinhar que quem morreu nos anos 70 não foi o realismo em geral, mas um certo tipo que chamaremos de realismo classicista, a tese de que a realidade tem uma estrutura próxima às nossas concepções e intuições clássicas a respeito do mundo.

Relembremos três capítulos do antirrealismo na história da física quântica.

(I)  O primeiro capítulo está associado à noção de complementaridade: “uma realidade independente no sentido físico ordinário não pode ser atribuída nem aos fenômenos, nem aos agentes da observação” (Bohr, 1928). Defendia-se que a teoria só trata do observável: uma realidade não observada pode até existir mas ela não é descritível pela linguagem humana. A posição de Bohr modificou-se em 1935, e há uma controvérsia sobre o grau de positivismo ou instrumentalismo da visão de Bohr [101]. Mas mesmo após esta época manteve-se o chamado “relacionismo”, segundo o qual a realidade observada é fruto da relação entre sujeito e objeto, sendo dependente das escolhas ou vontade do observador (“voluntarismo” de von Weizsäcker).

(II)   O segundo capítulo é uma forma de idealismo subjetivista associada a uma consciência legisladora. Ela surge da tese de que o colapso associado a medições só é causado pela observação humana: “a transformação irreversível no estado do objeto medido” seria devida à “faculdade de introspecção” ou ao “conhecimento imanente” que o observador consciente tem de seu próprio estado (London & Bauer, 1939). Filósofos adoram explorar os paradoxos trazidos por esta posição, como no exemplo do gato de Schrödinger, mas o consenso parece ser que tal posição radical é desnecessária (apesar de consistente). A interpretação dos estados relativos de Everett resolve problemas semelhantes sem atribuir um papel legislador à consciência, mas supondo que esta possa entrar em superposições quânticas.

(III) O terceiro capítulo do antirrealismo está associado ao trabalho de John S. Bell, que mostrou que qualquer teoria realista que satisfaça a propriedade de localidade (salvo algumas exceções) é inconsistente com a Teoria Quântica. Quem morreu com este resultado não foram as teorias realistas não locais (como a de David Bonm), mas sim boa parte do realismo local, uma variedade de realismo classicista que defende que, na realidade, os sinais sempre se propagam com uma velocidade menor ou igual à da luz.

Alguns outros exemplos de suposições classicistas que são violadas por alguma interpretação da Teoria Quântica (além da localidade) são: determinismo, corpuscularismo (a matéria é composta de partículas), a tese de que o mundo existe em quatro dimensões, de que eventos presentes não afetam o passado, de que emissões de partículas ocorrem em instantes bem determinados, etc. Apesar do classicismo estar em geral associado ao realismo, notamos que o classicismo pode ser em boa parte adotado por abordagens positivistas, como é o caso da interpretação da complementaridade de Niels Bohr.


OBS: leia a PARTE 1.





[99] Ver  NIINILUOTO, op. cit. (NOTA 97), P. 467. Ver também MURDOCH (1987), op. cit. (nota 86), pp. 200-7. Para mais sobre o realismo, consultar: LEPLIN, J. (org.) (1984), Scientific Realism, U. Of California Press, Berkeley; TOULMIN, S. (org.) (1970), Physical Reality, Harper & Row, Nova Iorque.

[100] Para uma excelente introdução à problemática da verdade, ver HAACK, S. (1998), Filosofias das Lógicas, Ed. Unesp, São Paulo, cap. 7; original: Philosophy of Logics, Cambridge U. Press, 1978. Em português, ver também: DA COSTA, N.C.A. (1997), O Conhecimento Científico, Discurso Editorial, São Paulo, cap. III.

[100a] Uma distinção clássica entre realismo, descritivismo e instrumentalismo é a de NAGEL, E. (1961), The Structure of Science, Harcourt, Nova Iorque, cap 6.

[101] Dentre os que enfatizaram o realismo de Bohr estão Hooker (1972), Folse (1985), Honner (1987) e Murdoch (1987). Dentre os que enfatizam seu não realismo, encontramos Fine (1986), Krips (1987) e Faye (1991). Estas referências, uma introdução ao problema, e vários artigos sobre Bohr podem ser encontrados em: FAYE, J. & FOLSE, H.J. (orgs) (1994): Niels Bohr and Contemporary Philosophy, (Boston Studies in the Philosophy of Science 153), Kluwer, Dordrecht (Holanda).

Realismo e Positivismo


Texto apresentado no capítulo XIV do livro Conceitos de Física Quântica, volume I, escrito por Osvaldo Pessoa Jr, Livraria da Física.
Uma síntese, feita pelo mesmo autor, pode ser lida na página destino deste link.

PARTE 1

Realismo em Geral

Você é um realista? Distingamos primeiramente um sentido “ontológico” (relativo às essências das coisas, ao “ser” das coisas) e um sentido “epistemológico” (relativo ao conhecimento). O realismo ontológico é a tese de que existe uma realidade lá fora que é independente de nossa mente (ou de qualquer mente), de nossa observação. A negação desta tese é chamada de idealismo, que pode assumir várias formas, conforme veremos. O realismo epistemológico afirma que é possível conhecer esta realidade, ou seja, que nossa teoria científica também se aplica para a realidade não observada. [94] Exploraremos inicialmente essas teses no nível do conhecimento individual, para depois analisarmos a forma que o realismo epistemológico assume quando consideramos o conhecimento científico – o chamado de realismo científico.

Para começar, devemos salientar que o termo “realismo” tem mudado de significado ao longo da história. Na filosofia medieval, o realismo era a tese de que os universais (“a árvore”, “a cadeira”, “o homem”) existem antes das coisas particulares, tese esta  que estava associada à filosofia de Platão. A esta posição se opunha o nominalismo, segundo o qual os universais são meros nomes, e a realidade só se refere ao particular do mundo físico atual (Guilherme de Occam, século XIV).

No século XIX o termo “realismo” surgiu principalmente nas artes como reação ao romantismo. Este último apresentava uma atitude holística, orgânica, intuitiva, idealizadora, que em ciência influenciou a Naturphilosophie (início do século: Goethe, Schelling, Oersted). A reação realista nas artes realçava o cotidiano e o social, tendendo a ser politicamente mais progressista.

Na ciência, o realismo estava associado ao mecanicismo e ao atomismo, com uma valorização da quantificação e do método hipotético-dedutivo [95]. Ele se contrapunha ao positivismo, originado com A. Comte e defendido por E. Mach e energeticistas como W. Ostwald. Para o positivismo, qualquer especulação sobre mecanismos ocultos deve ser evitado. Só tem sentido tecer afirmações sobre o que é observável, verificável. Uma sentença “sem sentido” é aquela para a qual não há um método para verificar se ela é verdadeira ou falsa. Por exemplo, a frase “a realidade física existiria mesmo que não existisse nenhum observador” seria sem sentido. Para o realista, porém, tal frase não só tem sentido como é verdadeira.

No século XX, a questão de como fundamentar o uso da matemática na ciência levou ao “positivismo lógico” (Viena: M. Schlick, R. Carnap) e “empirismo lógico” (Berlim: H. Reichenbach). Formas abrandadas dessas correntes tiveram bastante força até o início da década de 1960, na filosofia da ciência. Na década de 50, iniciou-se uma reação contra o positivismo lógico, centrando-se fogo especialmente no seu “empirismo”, tese de que as observações são bases seguras para construir a ciência (K. Popper, W. Quine). Por um lado, autores “relativistas” (M. Polanyi, N. R. Hanson, P. Feyerabend, T. Kuhn) atacaram a ênfase excessiva na descrição lógica da ciência, salientando que o conhecimento tem um componente intuitivo, e que ele está sujeito às circunstâncias históricas e sociais. De outro lado, a corrente do “realismo científico” (G. Maxwell, H. Putnam) foi elaborada, e tentaremos esboçá-la adiante.

Em outros campos, fora da filosofia da ciência, o “positivismo” foi também bastante atacado, tendo-se tornado até um termo depreciativo. Este sentido negativo parece ter surgido com as teorias positivistas em Ciências Humanas (inclusive na Educação), como o “behaviorismo” em Psicologia, que simplifica ao máximo a representação que se tem do ser humano, focalizando seu estudo apenas na relação entre estímulo e resposta (os dados “positivos”). [96] Tal abordagem pode ser usada para se justificar a manipulação e dominação de homens por outros homens, tendo sido bastante criticada, como por exemplo pela Escola de Frankfurt (T. Adorno, J. Habermas, etc). Salientemos então o seguinte: no presente estudo, iremos nos concentrar na discussão entre formas de realismo e antirrealismo nas Ciências Naturais, onde “positivismo” não é necessariamente um termo depreciativo.


Os Problemas do Conhecimento

Um ponto crucial para entender as diferentes formas do antirrealismo, ou o que significam os diferentes “ismos” filosóficos, é considerar o tipo de pergunta que cada um responde. Adaptaremos aqui as análises feitas pelo filósofo alemão Johannes Hessen e pelo filosofo da ciência finlandês Ilkka Niiniluoto [97].

Consideremos primeiramente o problema ontológico da existência de uma realidade independente do sujeito ou de uma mente. Já mencionamos que o realismo ontológico afirma a existência desta realidade; a negação desta tese recairia em um “idealismo ontológico”, que é mais conhecido como idealismo subjetivista. A forma mais radical desta é o “solpsismo”, segundo o qual a realidade se resume ao conteúdo do meu pensamento: a realidade seria uma espécie de sonho em minha mente. Uma forma menos radical é a doutrina do esse est percipi (Berkeley, séc. XVIII), segundo a qual só existe aquilo que é percebido por alguém. Berkeley termina por defender um idealismo objetivo, porque a realidade externa existiria enquanto atividade mental de Deus. Tal idealismo é consistente com o realismo ontológico. Vemos assim que o idealismo não surge apenas como negação do realismo ontológico. Um idealismo epistemológico [98] (que negaria o realismo epistemológico) defenderia a impossibilidade de se conhecer entidades independentes de qualquer sujeito cognoscente.

Podemos aceitar a existência de uma realidade exterior e colocar o problema epistemológico que Hessen chama de problema da “essência do conhecimento”: é o objeto que determina o sujeito (realismo), ou é o sujeito que determina o objeto do conhecimento (idealismo)? O idealismo transcendental daquele que é considerado o mais importante filósofo moderno, o alemão Immanuel Kant (séc. XVIII), adota uma posição intermediária: aceitar a existência de coisas-em-si (“número”), mas considera que a existência só tem acesso às coisas-para-nós, os “fenômenos”. Tais fenômenos, porém, seriam organizados pelo nosso aparelho perceptivo e cognitivo, sendo assim em parte dependentes do sujeito (isso também é defendido pelo idealismo conceitual de N. Rescher, 1973). A causalidade, por exemplo, não existiria na realidade, mas seria uma “categoria do entendimento”, uma estrutura cognitiva sem a qual a própria compreensão do mundo seria impossível.

No outro extremo, um tipo importante de realismo é o materialismo, para o qual apenas a matéria (e energia) existe ou é real: processos mentais seriam “epifenômenos” causados por processos materiais. O marxismo, uma forma de materialismo, considera que as ações humanas são determinadas pelos aspectos econômicos.

Consideremos agora um outro problema epistemológico, que é o da “possibilidade do conhecimento”: pode o sujeito aprender o objeto, pode ele conhecer verdades a respeito do mundo? Diferentes formas de realismo afirmam que sim, enquanto que a negação desta tese se chama ceticismo. Dentre as atitudes intermediárias podemos mencionar o pragmatismo (séc. XIX: C. S. Peirce, W. James), que leva em conta apenas as consequências práticas das ideias, e que é uma forma de relativismo. O relativismo considera que nosso conhecimento e as verdades dependem do contexto psicológico e social no qual nos encontramos.

Por fim, consideremos o problema da “origem do conhecimento”: é a razão ou é a experiência a fonte e a base do conhecimento humano? O empirismo considera que a única fonte de conhecimento é a experiência. Conhecimento sobre o que existe não pode ser obtido de maneira “a priori”. Os significados das ideias seriam redutíveis aos dados da experiência (séc. XVII-XVIII: F. Bacon, J. Locke, D. Hume). O sensacionismo (em inglês: “sensationalism”) ou “empirismo radical” enfatiza que as ideias são redutíveis às sensações (sense data), e no final do séc. XIX esta posição foi defendida pelo “empirio-criticismo” de Ernst Mach. A posição de Mach também é considerada uma forma de idealismo subjetivista, devido à tese de que “o mundo consiste apenas de sensações”. Uma forma mais pragmática de empirismo é o fisicalismo, para o qual os termos descritivos da linguagem se referem a objetos físicos (não sensações) e suas propriedades, e são definidos “operacionalmente”. Para o operacionismo (década de 1920: P. Bridgman), todo conceito científico é sinônimo do conjunto de operações físicas associados ao processo de medi-lo.

O ponto de vista oposto ao empirismo é o racionalismo (ou melhor, intelectualismo), que defende que o critério de verdade não é sensorial mas intelectual e dedutivo (R. Descartes, séc. XVII). Verdades básicas são evidentes para a razão, e outras verdades são dedutíveis destas. A posição de Kant pode ser considerada intermediária entre o empirismo e o racionalismo.

Para finalizar, salientemos que o positivismo não envolve uma tese única, mas consiste de quatro afirmações principais [98a]: (i) Descritivismo: só faz sentido atribuir realidade ao que for possível descrever, observar. (ii) Demarcação: teses científicas são claramente distinguidas de teses metafísicas e religiosas, por se basearem em “dados positivos” (são verificáveis). (iii) Neutralidade: o conhecimento científico deve ser separado de questões de aplicação  de valores. (iv) Unidade da ciência: todas as ciências têm um método único, baseado no empirismo e na indução.



OBS: Não deixe de ler a PARTE 2 deste texto.


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[94] Na literatura mais recente de filosofia da física de língua inglesa, é costume fazer uma distinção entre “realismo de entidade”, que seria sinônimo de realismo ontológico, e “realismo de propriedade”, que atribui existência às propriedades (autovalores associados a observáveis) mesmo antes de qualquer medição.

[95] BRUSH, S. (1980): “The Chimerical Cat: Philosophy of Quantum Mechanics in Historical Perspective”, Social Studies of Science 10, 393-447.

[96] Uma história da influência do positivismo de Mach tanto na Física quanto na Psicologia é apresentada por HOLTON, G. (1993), “Ernst Mach and the Fortunes of Positivism”, in Science and Anti-Science, Harvard U. Press, Cambridge, pp. 1-55.

[97] HESSEN, J. (1999), Teoria do Conhecimento, Martins Fontes, São Paulo. Original: Erkenntnistheorie, Dümmlers, Colônia, 1926. NIINILUOTO, I. (1987). “Varieties of Realism”, in LAHTI, P. & MITTELSTAEDT, P. (orgs.), Symposium on the Foundations of Modern Physics 1987, World Scientific, Cingapura, pp459-83.

[98] MEHLBERG, H. (1980), “Philosophical Interpretations of Quantum Physics”, in Mehlberg, Time, Causality, and the Quantum Theory, vol. 2 (Boston Studies in the Philosophy of Science 19), Reidel, Dordrecht, pp. 3-74. Ver p.8.

[98a] Adaptado de OLDROYD, D. (1986), The Arch of Knowledge – An Introductory Study of the History of the Philosophy and Methodology of Science, Methuen, Londres, p. 169. Este autor se baseia em KOLAKOWSKI, L. (1968), Alienation of Reason: A History of Positivist Thought, Doubleday, Garden City (original em polonês:1966).


segunda-feira, 12 de novembro de 2012

O Enigma da medição na mecânica quântica


Os experimentos da Dupla Fenda, da Escolha Retardada e suas variações demonstram, em grande parte, o quão distante do senso comum são os fenômenos sob exclusivo domínio de estudo da mecânica quântica.

Existem várias interpretações da teoria quântica. Uma interpretação é caracterizada por um conjunto concepções idealizadas que são somadas ao formalismo mínimo de uma teoria, sem que o primeiro conjunto acrescente quaisquer previsões observacionais da teoria [1].

Discussões a respeito de como interpretar a mecânica quântica surgiram tão logo esta teoria foi formulada, a partir de junho de 1925. De um lado, os alemães Werner Heisenberg (1901-1976), Max Born (1882-1970) e Pascual Jordan (1902-1980) desenvolveram a mecânica “matricial”, que utilizava matrizes para calcular as probabilidades de se obterem diferentes valores quantizados (discretos) das grandezas observáveis em experimentos atômicos. Alguns meses depois, o austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) formulou a mecânica “ondulatória”, baseada na ideia do francês Louis de Broglie (1892-1987) de que toda partícula é ao mesmo tempo onda. Schrödinger buscou interpretar seu formalismo, que em pouco tempo se mostrou ser equivalente à mecânica matricial, defendendo a hipótese de que na realidade os elétrons em um átomo formam uma onda na qual se distribui uniformemente a carga elétrica. De acordo com sua interpretação ondulatória, o mundo flui continuamente como uma onda, refletindo a função ψ(r) que aparece em sua versão da teoria.
Já de Broglie interpretava a nova mecânica quântica de maneira dualista: um elétron no átomo seria uma partícula de posição e velocidade bem definidas, a cada instante, mas também haveria uma onda associada, semelhante à concebida por Schrödinger.
As interpretações de Schrödinger e de Broglie podem ser consideradas “realistas”, pois segundo eles a teoria quântica representa a realidade de maneira definida a todo instante, mesmo quando não há ninguém fazendo observações ou medições. Isso se opõe à concepção “positivista” (também chamada “descritivista” ou “instrumentalista”), que salienta que a tarefa da ciência é descrever de maneira econômica (através de leis) aquilo que é observável, permitindo assim que se façam previsões de resultados em novos experimentos, e que não faz sentido lançar hipóteses a respeito de uma realidade não observável. Nessa época, Heisenberg e seu colega Wolfgang Pauli (1900-1958) defendiam explicitamente uma abordagem positivista, e a ideia seminal de Heisenberg, que lançou a mecânica matricial, baseava-se apenas em grandezas atômicas que eram diretamente observáveis, não a posição ou velocidade de um elétron em um átomo, mas a intensidade da luz emitida pelo átomo, sua frequência e sua polarização. Em outubro de 1927, o dinamarquês Niels Bohr (1885-1962), famoso por ter desenvolvido em 1914 um modelo atômico dentro da velha teoria quântica, apresentou uma interpretação bastante elaborada e consistente, de cunho positivista, que fez
frente às propostas de Schrödinger e de Broglie, e acabou se tornando a interpretação ortodoxa da mecânica quântica, obtendo as adesões de Heisenberg, Pauli, Born e da maioria dos físicos. O conceito central de sua interpretação era a “complementaridade”. [1]


O que motiva as várias interpretações? Você pode recorrer ao meu texto sobre este assunto  e ver, por meio de um exemplo, o quanto e diferente a real natureza de se usar a estatística para descrever um sorteio de loteria, ou a probabilidade de um dado fornecer determinado número, em relação ao que parte dos físicos consideram em relação aos fenômenos estudados pela mecânica quântica: a evolução do comportamento (como o deslocamento de uma partícula, por exemplo) é descrita apenas em termos probabilísticos (função de onda) e, ao se efetivar uma medição (a posição de uma partícula, por exemplo), uma observação, tem-se 100% de certeza estatística de um dos resultados previsto. Daí surge hipóteses como: a função de onda descreve uma onda física real? O que a teoria quântica dispõe é “fisicamente fechada” (a descrição é completa ou existem variáveis desconhecidas)? Os estados anteriores (as características assumidas em tempos anteriores a medição) definem completamente o que será medido? O se efetivar uma medição, acontece uma redução à zero na onda probabilística de todos os valores potencialmente considerados como resultados na medição, exceto aquele que é medido (ocorre o colapso da função de onda), ou o fenômeno ondulatório permanece com sua distribuição estatística nos moldes idênticos a fração de tempo anterior à medição?

Vale ressaltar o significado de colapso da função de onda.

De acordo com a mecânica quântica ortodoxa, quando procedemos a  uma medição e encontramos uma partícula em determinado lugar, provocamos uma medição e encontramos uma partícula em determinado lugar, provocando uma alteração na sua onda de probabilidade: a gama anterior de resultados potenciais reduz-se a um: o resultado obtido pela medição (...). Os físicos dizem que a medição provoca o colapso da onda de probabilidade e acrescentam que quanto maior for a onda de probabilidade original em determinado lugar, maios será a chance de que o colapso da onda se dê naquele ponto(...) no momento em que você encontra a partícula em um lugar, diz esse raciocino, a probabilidade de que ela possa ser encontrada em qualquer outro lugar cai imediatamente a zero, e isso é o que está refletindo no colapso da onda de probabilidade. [2]

Essa concepção leva a nos perguntarmos o que ocorre, no momento da medição, que leva ao colapso descrito. O que realmente acontece a nível subatômico? A resposta a esse enigma, se passível de comprovação experimental, pode levar a uma unificação, ou algo próximo disso, em relação às interpretações da mecânica quântica.

De forma um tanto quanto mais técnica, o físico Osvaldo Pessoa Jr comenta um importante ponto sobre o colapso da função de onda.


Se não há causa para o resultado das medições, então este deve ser um processo genuinamente aleatório, violando o princípio de razão suficiente de Leibnitz. A conclusão é que o colapso é um processo indeterminista. Notem, porém, que esta conclusão é independente da tese positivista, difundida por alguns defensores da interpretação ortodoxa a partir da década de 1920, segundo a qual o mundo quântico seria indeterminista, já que não há maneira de prever com exatidão o resultado de experimentos quânticos. [3]

Na física, diz-se que um evento é determinista quando uma medição é definida por valores das grandezas físicas que antecedem a medição (como a posição de um veículo é definida pela posição anterior e a trajetória feita – velocidade, aceleração, direções, etc). Se isso não acontece, diz-se que o evento é indeterminista. Com efeito, infere-se que há físicos que entendem que a medição de uma partícula tem o valor de sua posição (spin, quantidade de movimento, etc) assumido na medição, ou seja: os valores medidos tem uma natureza aleatória, nesta contexto.


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[1] Pessoa Jr, Osvaldo: As interpretações contemporâneas da mecânica quântica, Departamento de Filosofia, FFLCH - Universidade de São Paulo, CBPF-CS-005/08.

[2] Greene, Brian: O tecido do cosmo – O espaço, o tempo e a textura da realidade, Companhia das Letras.

[3] Pessoa Jr, Osvaldo: Conceitos e Interpretações da Mecânica Quântica: o Teorema de Bell, Departamento de Filosofia, FFLCH - Universidade de São Paulo, WECIQ 2006 - Mini-curso 1.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Variações à experiência da escolha retardada

Veja minha primeira abordagem sobre a experiencia da escolha retardada aqui, para uma melhor compreensão do texto que se segue. 



Extrato do livro O Tecido do Cosmo – O espaço, o tempo e a textura da realidade, de Brian Greene, editora Companhia das Letras (pode ser encontrado, em parte no Google Books).

Começamos com o experimento da figura 7.1a, modificado com a redução da frequência do laser, que passa a disparar um fóton de cada vez, como na figura 7.1b, e também com a colocação de um novo detector de fótons próximo ao divisor de feixes.


Se o novo detector estiver desligado (veja figura 7.2b), estaremos de volta à configuração original do experimento e os fótons gerarão um padrão de interferência na tela fotográfica. Mas se o novo detector estiver ligado (figura 7.2a), ele nos mostrará o caminho seguido por cada fóton: se ele detectar um fóton, então é porque o fóton tomou aquele caminho; se ele não detectar um fóton, então é porque o fóton tomou o outro caminho. Essa “informação de escolha”, como é chamada, obriga o fóton a agir como partícula e, portanto, o padrão de interferência ondulatório já não é gerado.


Agora, vamos mudar as coisas à la Wheeler, deslocando o novo detector de fótons mais para longe em um dos caminhos. Em princípio, os caminhos podem ser tão longos quanto se queira, de modo que o novo detector pode estar a uma distância considerável do divisor de feixes. Também aqui, se o novo detector de fótons estiver desligado, estaremos na situação normal e os fótons comporão um padrão de interferência na tela. Se ele estiver ligado, fornecerá informações de escolha, o que impedirá a existência do padrão de interferência.

A nova estranheza provém do fato de que o recebimento da informação de escolha ocorre muito depois de que o fóton tenha tido que “decidir”, no divisor de feixes, se atuará como onda e viajará pelos dois caminhos ou se atuará como partícula e viajará apenas por um deles. Quando o fóton passa pelo divisor de feixes, ele não pode “saber” se o novo detector estará ligado ou desligado – na verdade, o experimento pode ser realizado de maneira que o interruptor do detector só seja acionado depois que o fóton tenha passado pelo divisor de feixes. Para estar preparada para a possibilidade de que o detector esteja desligado, a onda quântica do fóton deve dividir-se e viajar por ambos os caminhos, de modo que um amálgama dos dois possa gerar o padrão de interferência observado. Mas, se acontecer que o novo detector esteja ligado – ainda que depois que o fóton já tenha deixado o divisor de feixes -, isso poderia causar uma crise de identidade para o fóton: ao passar pelo divisor de feixes, ele já se teria comprometido com o caráter ondulatório viajando pelos dois caminhos, mas agora, algum tempo depois de ter feito essa escolha, ele “percebe” que precisa passar a ser uma partícula, que viaja por um único caminho.

De algum modo, contudo, o fóton acerta sempre. Toda vez que o detector está ligado – mesmo que o ato de liga-lo ocorra bem depois de determinado fóton ter passado pelo divisor de feixes -, o fóton atua inteiramente como partícula. Ele será encontrado apenas em um dos caminhos para a tela (se colocássemos detectores de fótons mais abaixo, nas trajetórias, cada fóton emitido pelo laser seria detectado por um detector ou pelo outro, mas nunca pelos dois); os dados resultantes não mostram o padrão de interferência. Toda vez que o novo detector está desligado – mesmo que a decisão seja tomada depois que cada fóton tenha passado pelo divisor de feixes -, os fótons atuam inteiramente como ondas, produzindo o famoso padrão de interferência que indica que eles viajaram por ambas as trajetórias. É como se ajustassem o seu comportamento no passado de acordo com a escolha futura, segundo esteja o detector ligado ou desligado. É como se tivessem uma “premonição” da situação experimental que encontrariam mais adiante e já atuariam de acordo com ela. É como se uma história coerente e definida se tornasse manifesta apenas depois de que o futuro ao qual ela leva estivesse totalmente estabelecido. (...)

[Neste ponto, o autor mostra que a luz de um quasar, emitida e bilhões de anos, pode ser dividida de forma a, potencialmente, percorrer dois caminhos e chegar a Terra, no qual um detector pode identificar qual dos caminhos foi “adotado” pelo fóton: uma versão cósmica do experimento aqui descrito].

A mecânica quântica não nega que o passado tenha acontecido, e acontecido por completo. A tensão surge simplesmente porque o conceito quântico de passado é diferente do conceito de passado de acordo com a intuição clássica. A nossa criação clássica nos faz desejar dizer que determinado fóton fez isto ou aquilo. Mas no mundo quântico, no nosso mundo, esse raciocínio impõe ao fóton uma realidade demasiado restrita. Como vimos, na mecânica quântica a norma é uma realidade indeterminada, difusa, híbrida, que consiste em múltiplos ramos e que só se cristaliza em uma realidade mais familiar e definida quando se faz uma observação adequada. Não é que o fóton tenha decidido bilhões de anos atrás contornar a galáxia por um lado ou pelo outro. Durante esses bilhões de anos ele se manteve dentro da norma quântica – um híbrido de todas as possibilidades. (...)

Uma observação feita hoje, portanto, ajuda a completar a história que relatamos, de um processo que teve início ontem, ou no dia anterior, ou talvez há 1 bilhão de anos. Uma observação feita hoje pode delinear os detalhes que podemos e devemos incluir no nosso relato do passado.


  O Passado Apagado

É essencial ressaltar que, nesses experimentos, o passado não é de modo algum alterado pelas ações de hoje, e nenhuma modificação que façamos no experimento pode alcançar esse fim. Isso leva à seguinte pergunta: se não se pode modificar algo que já aconteceu, pode-se fazer a coisa mais próxima a isso – apagar o impacto desse fato sobre o presente? Em determinado grau, por vezes essa fantasia pode ser realizada. (...) Só quando um evento do passado parece impedir definitivamente a ocorrência de um evento futuro (assim como defesa do pênalti impede a vitória do time adversário), poderíamos pensar em que algo errado teria acontecido. O apagador quântico, originalmente concebido em 1982 por Marlan Scully e Kai Drühl, sugere esse tipo de estranheza na mecânica quântica.
(...)


 O Passado Conformado

Este experimento, o apagador quântico de escolha retardada, também foi proposto por Scully e Drühl. Ele tem início com o experimento do divisor de feixes da figura 7.1, modificado pela inserção de dois conversores-descendentes, um em cada caminho. Os conversores-descendentes são instrumentos que tomam um fóton como entrada e produzem dois fótons como resultado, cada qual com a metade da energia (convertida e reduzida) do original. Um dos dois fótons (denominado fóton-sinal) é orientado para tomar o caminho que o fóton original teria percorrido em direção à tela do detector. O outro fóton produzido pelo conversor-descendente (denominado fóton-complementar) é enviado em uma direção totalmente diferente, como na figura 7.5a. Cada vez que o experimento é realizado, podemos determinar qual o caminho tomado pelo fóton-sinal em direção à tela observando qual dos conversores-descendentes emite o parceiro espectador. Neste caso, mais uma vez a capacidade de compilar as informações de escolha a respeito dos fótons-sinais – ainda que totalmente indireta, uma vez que não estamos interagindo com nenhum fóton-sinal – tem o efeito de prevenir a formação de um padrão de interferência.

Agora vamos à parte estranha. E se manipularmos o experimento para que se torne impossível determinar de qual conversor descendente determinado fóton-complementar surge? Ou seja: e se apagarmos a informação de escolha que os fótons-complementares contêm? Acontece algo assombroso: ainda que não tenhamos feito nada diretamente com os fótons-sinais, ao apagarmos as informações de escolha contidas nos parceiros espectadores podemos recuperar o padrão de interferência a partir dos fótons-sinais. Vamos ver como isso funciona, porque é verdadeiramente fantástico.

Observe a figura 7.5b, que reúne todas as ideias essenciais, mas não se deixe intimidar. É mais simples do que parece e vamos avançar com passos seguros. A configuração que aparece na figura 7.5b difere da que aparece na figura 7.5a quanto ao modo de detectar os fótons-espectadores depois da emissão. Na figura 7.5a, a detecção é imediata, de forma que podemos determinar instantaneamente qual conversor-descendente os produziu – ou seja, qual o caminho tomado por determinado fóton-sinal. No novo experimento, cada fóton-complementar é enviado a um labirinto, que compromete nossa capacidade de fazer essa determinação. Imagine, por exemplo, que um fóton-complementar é emitido pelo conversor-descendente que tem a etiqueta “L”. Em vez de entrar imediatamente em um detector (como na figura 7.5a), esse fóton é enviado a um divisor de feixes (com a etiqueta “a”) e tem, portanto, 50% de possibilidade de seguir em frente pelo caminho “B”. Se ele seguir pelo caminho “A”, entrará em um detector de fóton (etiqueta “1”) e sua chegada será devidamente registrada. Mas se o fóton-complementar seguir pelo caminho “B”, estará sujeito a mais andanças. Ele se dirigirá a outro divisor de feixes (etiqueta “c”) e terá, portanto, 50% de possibilidade de seguir em frente pelo caminho “E” para o detector “2” e 50% de possibilidade de seguir em frente pelo caminho “F” para o detector “3”. Agora- mantenha-se atento porque tudo isto vai fazer sentido – este mesmo raciocínio, quando aplicado a um fóton-complementar emitido pelo outro conversor-descendente, com a etiqueta “R”, nos indica que se o fóton-complementar seguir pelo caminho “D”, ele será registrado pelo detector “4”, mas se seguir pelo caminho “C”, será detectado ou pelo detector “3” ou pelo detector “2”, dependendo do caminho que tomar depois de passar pelo divisor de feixes “b”.


Por que acrescentamos todas essas complicações? Note que se um fóton-complementar for detectado pelo detector “1”, ficamos sabendo que o fóton-sinal correspondente tomou o caminho da esquerda, uma vez que um fóton-complementar que tenha sido emitido pelo conversor-descendente “R” não tem como chegar a este detector. Do mesmo modo, se um fóton-complementar for detectado pelo detector “4”, ficamos sabendo que o fóton-sinal correspondente tomou o caminho da direita. Mas se um fóton-complementar acabar no detector “2”, não teremos nenhuma ideia quanto ao caminho tomado pelo seu aprceiro-sinal, pois há possibilidades iguais de que ele tenha sido emitido pelo conversor-descendente “L! e seguir o caminho B-E, ou de que tenha sido emitido pelo conversor-descendente “R” e tomado o caminho C-E. Do mesmo modo, se um fóton-complementar for detectado pelo detector “3”, ele poderá ter sido emitido pelo conversor-descendente “L” e viajado pelo caminho B-F, ou pelo conversor-descendente “R” e viajado pelo caminho C-F. Assim, para os fótons-sinais cujos fótons-complementares foram detectados pelos detectores “1” ou “4”, teremos informações de escolha, mas para aqueles cujos fótons-complementares forem detectados pelos detectores “2” ou “3”, as informações de escolha são apagadas.

Este apagamento de algumas das informações de escolha – embora não tenhamos feito nada diretamente com os fótons-sinais – significa a recuperação dos efeitos da interferência? Sim senhor – mas apenas para os fótons-complementares chegam aos detectores “2” ou “3”. (...) Porém não haveria nenhum padrão de interferência se nos concentrássemos apenas nos fótons-sinais cujos parceiros complementares chegaram aos detectores “1” ou “4” (...).

Esses resultados – confirmados em experimentos – são extraordinários: ao incluirmos os conversores-descendentes que têm o potencial de propiciar informações de escolha, perdemos o padrão de interferência, como na figura 7.5a. (...) eliminando cuidadosamente as informações de escolha potenciais, trazidas por alguns dos fótons-complementares, podemos induzir a formação de um padrão de interferência que indica que alguns dos fótons tomaram, na verdade, ambos os caminhos.

Note também o que talvez seja o resultado mais espantoso de todos: os três divisores de feixes e os quatro detectores de fótons-complementares que foram acrescentados podem estar no outro lado do laboratório, ou mesmo no outro lado do universo, uma vez que nada na nossa discussão depende de que eles recebam determinado fóton-complementar antes ou depois de que o fóton-sinal que é seu parceiro atinja a tela. Imagine, então, que esses instrumentos estão bem longe, a dez anos-luz de distância (...) o que esta discussão mostra com vigor é que a história que contamos para explicar os dados dos fótons-sinais depende significativamente de medições feitas dez anos depois do momento em que esses dados foram reunidos.