terça-feira, 27 de agosto de 2013

Existe uma realidade fundamental? - Parte II

O espinho que incomoda qualquer um diante desta questão é: a matéria pode ser “criada”, porque a materialidade é apenas um dos aspectos da realidade. Mas, seja o que for a realidade fundamental, ela não pode ser “criada”. Se você fincar uma estaca e disser, “É aqui, X; aqui está o aspecto mais básico da realidade”, qualquer um pode levantar a mão e falar: “Mas, quem ou o que criou X?”. O criador de X, seja ele Deus, a matemática, a gravidade, a curvatura do espaço-tempo ou qualquer outra especulação, sempre deve ser mais fundamental ainda. Isso significa que a “fonte da criação” é “incriada” – um conceito que a ciência acha quase impossível admitir. Teorias sobre múltiplos universos não nos ajudam, pois mesmo que se teorize ou se encontre a existência de trilhões de outros universos, quem ou o que os criou? Alguns cientistas especulam que outros mundos se criaram entre si, ou que progridem e decaem num ritmo cósmico de nascimento e morte. Isso também não resolve o problema. Quem ou o que determinou o ritmo? O “incriado” é um pesadelo intelectual e científico!

Embora seja normal supor que somos as pessoas mais inteligentes que já viveram, os antigos sábios de Índia sabiam o bastante para declarar que “X”, a realidade mais fundamental, não tem propriedades físicas. Os antigos sábios, inclusive, recusavam-se a dar-lhe sequer um “nome”, preferindo chama-lo de “Isso” (tat, em sânscrito). Na verdade, de acordo com os costumes indianos, eu cometo um “pecado” filosófico/metafísico ao denominá-lo (o “isso”) de “Consciência Pura”, tornando-o mais tangível do que na verdade ele é. No mais profundo do meu ser, eu aceito irrestritamente a natureza inominada, informe e inconcebível do “Isso”.

É aqui que a ciência e a espiritualidade podem ser concordantes. Assim como os átomos e suas partículas “não têm propriedade física” (Heisenberg, Princípio da incerteza), a mente humana se desvanece quando se percebe que ela tampouco tem propriedades físicas. Os átomos e suas partículas surgem de um vácuo (“nada”) que é puro potencial; os pensamentos surgem de um vácuo que é “Isso”, pura consciência! Quando a ciência descreve o “vácuo”, ela está simplesmente fazendo “não afirmações sobre a não existência”. Será que isso não é uma desistência científica? A palavra latina “qualia” é um termo filosófico que define as qualidades subjetivas das experiências mentais ou da percepção mental. Por exemplo, a “vermelhidão” do vermelho ou o “doloroso” da dor. Assim, o tom vermelho, a suavidade e a fragrância de uma rosa são qualia, assim como a doçura do açúcar e a salinidade do sal. Daniel Siegel, PhD em Psiquiatria, juntou todas essas qualia no acrônimo “Sift” (“peneirar”, em inglês), que representa sensação, imagem, sentimento e pensamento. É um acrônimo inteligente, pois, na verdade, nós “peneiramos” o fluxo de dados que nos bombardeia de todos os lados, transformando-o em uma ou mais qualia.
O escritor inglês Christopher Isherwood, ficou famoso por sua frase: “I am a câmera” (Eu sou uma câmera), quando se referia à sua incrível capacidade de registrar dados de memória. Mas nós não somos nenhuma câmera (ou qualquer outra máquina) pela simples razão de que uma câmera não filtra a realidade, enquanto nós temos a escolha de filtra-la ou “peneirá-la”. Olhar para uma paisagem da natureza selvagem envolve um processo específico de filtragem. Cada um de nós vai notar várias cores e tons em meio à luz que muda, sentir o cheiro das plantas ao seu redor e ouvir o canto dos pássaros ou o som do vento farfalhando nos nossos ouvidos, para incorporar tudo isso numa sensação de pasmo, e também nos pensamentos pessoais despertados pelo cenário. Não há duas pessoas que apreciem o mesmo cenário da mesma maneira. Duas câmeras, no entanto, podem facilmente tirar duas fotos completamente iguais. A ciência se lança sobre essa singularidade com entusiasmo, insistindo em que um experimentador deve replicar os resultados de outro, para verificação. Mas, quando alega que uma câmera registra a realidade tal como ela deve ser registrada, a ciência joga a peneira pela janela. As qualia que foram descartadas – sensações, imagens, sentimentos e pensamentos – são as únicas coisas em que podemos realmente confiar.

Então, a questão óbvia é: de onde vêm as qualia? Os neurocientistas afirmam que elas vêm “do” cérebro. Um pensador da Antiguidade, como Platão, dizia que eram parte da natureza. Ambas as respostas são suposições. E apenas suposições. Não importa o quanto se esmere na sondagem do córtex visual, um neurocientista jamais encontrará o tom vermelho de uma rosa naquela pantanosa massa cinzenta; só vai achar uma sopa eletroquímica. Não importa com que profundidade um filósofo se volte para o interior da mente, ele nunca encontrará o ponto exato onde a consciência de súbito produz um tom vermelho aveludado de uma rosa. A trilha termina com a admissão de que sensações, imagens, sentimentos e pensamentos constituintes da realidade são “irredutíveis”. É a lei das qualia. É por isso que a conexão entre mente e cérebro (ou para ser mais genérico, entre a mente e qualquer coisa física) é conhecida como o problema mais difícil de solucionar cientificamente. A consciência não vai deixar você espiar atrás da cortina. A realidade fundamental é tímida; não vai deixar jamais você vê-la nua! Mas, e se invertermos o problema difícil? Em vez de pedir uma explicação física da realidade subjetiva, podemos reivindicar uma explicação subjetiva do mundo físico.  Essa tática funciona. Se você decompuser uma célula cerebral em busca do lugar de onde vem o tom vermelho de uma rosa, a célula acaba desaparecendo em ondas de energia que irão colapsar em puro potencial. Se, ao contrário, você começar a experimentar o vermelho, ele também vai desaparecer, agora no silêncio da mente. Mas, quando isso acontecer, você não vai estar de mãos vazias. Ainda vai estar desperto e atento. “Isso” não pode desaparecer. E mais: ao ligar um interruptor mental, você pode transformar a silenciosa consciência na totalidade do mundo físico. Fazemos isso o tempo todo. Até os cientistas fazem, embora afirmem que estão sendo puramente objetivos. A consciência é senhora de tudo que surge de si mesmo.
A ciência ocidental descarta ou ignora argumentos que poderiam ameaçar seu apego à objetividade. Eu entendo. O Yoga Vasistha, um dos principais textos do vedantismo indiano, propõe uma ideia brilhante. Ao descrever a realidade final e fundamental, Vasistha diz: “É o que não podemos imaginar, mas é de onde se origina toda a imaginação. É o inconcebível, mas é de onde se origina toda a concepção e todo o pensamento”. Para mim, que estou familiarizado com metafísica oriental e com a física ocidental, essa afirmação indiana está bem próxima da realidade quântica. E nem foi preciso toda uma parafernália científica para que os sábios da antiguidade chegassem á mesma conclusão a que chegaram os cientistas ocidentais; para eles, a meditação foi suficiente para que entrassem em sintonia com a própria realidade. A questão é que todos nós, independente de sermos espiritualistas ou cientistas, estamos em contato direto com nossa fonte inconcebível e inimaginável. Por mais que Einstein, Schrödinger e seus colegas tenham se sentido contrariados, eles superaram a dor que acompanhou a aceitação de um mundo quântico. Agora é chegado o momento de integrar esse mundo na nossa vida prática cotidiana, pois a consciência é totalmente capaz de abranger tanto os aspectos subjetivos quanto os objetivos da realidade. As duas formas de observar a realidade fundamental não precisam viver separadas e em desarmonia. Estamos sempre peneirando, a cada segundo da nossa existência. Muitos cientistas não confiam em suas viagens interiores, mas nenhuma pessoa espiritualizada confia em quem tenha uma fixação obsessiva pelo materialismo. A verdadeira segurança só existe na luz da consciência que liga todos os seres humanos.


Breno - O Deísta

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Existe uma realidade fundamental? Parte I

Se você puser um sapo dentro de uma caixa e entregar a um cientista, ele pode dizer muitas coisas fascinantes sobre a criatura. Luigi Galvani, físico italiano de Bolonha, aplicou uma centelha à perna de um sapo, em 1771, e observou que os músculos se contraíam. O estabelecimento de uma relação entre a eletricidade e o funcionamento do corpo abriu um novo mundo. Seria justo dizer que, sem essa simples observação de Galvani, não existiria todo o campo da neurociência.

Se você pegar outra caixa e colocar um cérebro humano dentro, mais uma vez os cientistas vão descobrir coisas fascinantes, porém, alguns mistérios essenciais não poderão ser explicados; por exemplo, como as imagens são visualizadas no córtex, como uma célula cerebral armazena memória ou como chegamos a nos identificar como indivíduos. Portanto, da perspectiva científica, o cérebro é uma “caixa preta”, um sistema cujo funcionamento interno é refratário a explicações. Quando você põe alguma coisa numa caixa preta, os cientistas só conseguem estudar o que entra e o que sai. O que ocorre dentro da caixa pode ser apenas um tema para especulação.

Mas ainda há um terceiro tipo de caixa com a qual a ciência tem lutado. Nela, você põe a realidade. Quando se pede a um cientista para dizer o que há nessa caixa, ele enfrenta enormes problemas. Por exemplo, ele se debate com a interpretação da maneira estranha como os átomos, os constituintes básicos do mundo físico, estão numa região de sombra entre o real e o irreal. Os espiritualistas confiam no fato de que cada partícula no universo tem a sua fonte no “nada”. Naturalmente, porque é muito difícil relacionar o “nada” com “alguma coisa”, o visível com o invisível. Na verdade, as idas e vindas entre a ciência e a espiritualidade têm sido uma contenda a respeito desse único problema. 

Mesmo entre os físicos de mente mais aberta, o mistério da realidade beira o insolúvel. É triste e comovente ler, na historicidade científica ocidental, a aflição dos pioneiros da física quântica quando perceberam que tinham deixado o mundo físico em frangalhos – um mundo antes tão confiável, tranquilizador e disponível aos cinco sentidos. Quando apresentou a sua famosa equação explicando o comportamento ondulatório das partículas, Schrödinger disse que preferia não ter feito a descoberta, pelos sofrimentos e conflitos dela decorrentes. Einstein, igualmente, recusava-se veementemente a aceitar a estranheza de um mundo regido pela mecânica quântica. Para ele, o desmantelamento da certeza era enervante demais. Mas não há dúvidas de que a teoria quântica está correta, até onde vão os cálculos mais pessimistas.

Hoje, uma geração importante de físicos já fez as pazes totalmente com a realidade quântica. Embora se esquive dos aspectos mais inquietantes da teoria, a ciência é regida por fatos. O primeiro deles é que toda experiência ocorre “na”consciência. Isso é mais que um processo cerebral. O segundo fato é que, se houver uma realidade exterior à consciência, nós nunca saberemos o que ela é. Os cientistas reconhecem que nada mais pode ser conhecido fora do cérebro, mas, ao mesmo tempo, acha que, de alguma forma, a ciência está no caminho certo de obter todas as respostas que teremos um dia. Talvez o mais destacado físico a tentar explicar esta discrepância seja Sir Roger Penrose. Ainda que demonstrando perplexidade, ele declarou: “Não acredito que já tenhamos encontrado o verdadeiro caminho para a realidade, apesar dos extraordinários progressos realizados nos últimos dois milênios e meio, em especial, nos dois últimos séculos. Sem dúvida serão necessários novos insights fundamentais”. Do lado da espiritualidade, esses insights vêm existindo há muito tempo. A realidade é consciência pura. Nada existe fora dela. Seus efeitos abrangem tudo.
 Não pode haver outra resposta. Para chegar a ela, contudo, a ciência precisa deixar de lado a ilusão de que existe um mundo físico “lá fora” ao qual se apegar. Mas os cientistas, em geral, agarram-se a isso com todas as suas forças, mesmo quando, tentando exemplificar, citam provas em contrário.

Vejo a aflição dos físicos em lidar com a realidade e fico imaginando-os como a tripulação de um barco à deriva, em mares turbulentos, sendo sacudido por fortes ondas. O capitão, gritando para o imediato medir a próxima onda a se chocar com o barco. Os instrumentos acusam tratar-se de uma onda de dez metros de altura. “A que velocidade ela vem em nossa direção?”, brada o capitão, preocupado com a possibilidade de o barco virar. Mas antes de gritar a resposta, a onda arrebenta sobre o barco, e tudo o que a tripulação pode fazer é se agarrar à murada para salvar a própria vida. Se substituirmos uma onda de luz ou um feixe de elétrons pelas ondas do mar, a situação fica bastante semelhante à que Einstein e seus colegas enfrentaram quando observaram a realidade quântica. Assim como o imediato, eles podiam medir a massa, a carga e o spin, imobilizando a realidade física, no meio do processo, e descrevendo o que era possível descrever. Enquanto isso, as ondas continuavam a bater violentamente no barco: a realidade está em movimento perpétuo, não espera por ninguém!

Sir Roger Penrose entendeu como a realidade não é “manejável”, ao dizer: “Alguns observadores ainda podem manter a perspectiva de que a própria estrada é uma miragem. Outros talvez tenham a impressão de que a noção de realidade física, com uma natureza verdadeiramente objetiva, independente de como optemos por vê-la, é um sonho em vão”. Parece que a ciência não percebe a ambivalência destas questões. “Esqueça a realidade. Cale a boca e faça os cálculos”, é tudo o que os cientistas sabem dizer. Mas a realidade não cala a boca, e a torturante verdade é que o seu conceito de senso comum sobre o mundo físico já se revelou um barco furado.


Mas, “o que é a realidade fundamental?”

O crédito deste artigo vai para "Breno - O Deísta", ao qual cedeu gentilmente o uso do texto.