terça-feira, 7 de agosto de 2012

O Mundo de Ietsirá


Faz que o Criador se sente em sua Base.
Séfer Ietsirá


O rabino Kaplan faz uma profunda análise da frase acima. A palavra hebraica para base é Machón. O autor destaca que, no Talmud, Machón é interpretada como uma ligação entre o mundo físico e espiritual, uma ponte.

O assunto é abordado para conduzir o leitor a perceber Ietsirá como a base do mundo físico, um molde, o sustentáculo do nosso universo. É o alicerce no qual é fixado o Trono de Deus (Mundo de Beriá).

Uma grande diferenciação em relação à Beriá e a multiplicidade. As individualidades se tornam possíveis neste novo plano de existência [1].

Em Ietsirá, a energia primitiva da criação decai, em outras palavras, é amenizada e torna possível a existência de entes distintos (lembre-se que em Beriá, o que chamei por princípio, substância e informação estão profundamente interligados).

Vou apelar para outro campo de exemplos para ampliar minha didática nesta explicação. Para a maioria dos brasileiros (excluamos ai boa parte dos baianos e mais algumas outras pessoas no território nacional), experimentar um espetinho de carne que tenha sido mergulhado, por completo, no molho de pimenta mais forte da culinária, inviabiliza sentirmos o sabor da carne: praticamente, só prevalece o gosto da pimenta. Por outro lado, ao fazer operação similar, mergulhando o espetinho em uma quantidade similar de molho shoyo, será possível degustar a carne percebendo a quantidade de sal e textura da mesma, dentre outros aspectos. Beriá é o molho de pimenta: não percebemos os "detalhes". Ietsirá é o molho shoyo, permite apreciar toda uma riqueza de sensações existentes.

É mister o leitor perceber a continuidade do processo até então apresentado. A criação passa por uma nova concepção, uma mudança de percepção, ou nova quebra de simetria. Os conceitos originados em Beriá e a essência deste universo, deságua na existência de Ietsirá com certa naturalidade.

A natureza participativa e indissolúvel dos três arquétipos universais, apresentados até então, evoluirão para uma maior independência neste novo plano, o terceiro apresentado aqui dentro da existência. Esse foi o motivo da escolha de triângulos quando apresentei, em forma de desenho, os conceitos que tratei na seção anterior (ver figura no texto sobre Beriá).

O domínio da assimetria sobre a simetria avança: há uma nova repartição, agrupamento e análise das propriedades da criação. O leitor deve ter em mente que há uma elipse ao redor do espaço cinza, tanto na figura que é apresentada no texto sobre Atsilut quanto na figura no texto sobre Beriá. Trata-se da representação da força, ou conceito, da assimetria.

Cada vez que há uma ruptura de conceitos na criação, o desdobramento da mesma, é como se houvesse um novo “mergulho”, ou uma nova tônica, do arquétipo da assimetria.

Estamos tratando de um nível na criação em que as energias que a compõe podem ser avaliadas e percebidas de forma mais independente. Na cabala, denomina-se por sefirah (hebraico) as forças universais que estão alocadas nos vértices dos triângulos. Seu plural é sephirot. O arquétipo do princípio, o primeiro triângulo da  figura no texto sobre Beriá, expõe sua estruturação básica:
- o vértice superior do triângulo é a essência do princípio, ou seja, o conceito fundamental e necessário para que algo, ou alguém, venha a existir. Nele se resume a existência. Por este motivo esta sefirah é costumeiramente ligada ao Mundo de Atsilut, ou até a Deus. É o princípio em perfeito equilíbrio. Os cabalistas chamam esta força de Kéter, que é literalmente traduzido por coroa;
- no vértice direito, está à característica da existência que tange o aspecto da substância. É o que permite a percepção do que existe. Reflete o princípio visto sob seu aspecto masculino, ou da matéria. Na cabala, esta sefirah é denominada de Chochmá, que pode ser traduzido por sabedoria. Kaplan afirma que esta sabedoria deve ser compreendida sob um aspecto indivisível, uma unidade coesa, ou o pensamento na sua forma mais pura e indiferenciável; e
- completando a figura, tem-se o vértice esquerdo, morada daquilo que permitirá a canalização dos atributos acima abordados. O que permite esta canalização é denominada como entendimento, Biná em hebraico. Em outras palavras, esta sefirah é aquilo pelo qual se diferencia o princípio em toda e qualquer coisa que existe. Vemos aqui o princípio na sua face feminina, ou da forma.

Alguns cabalistas afirmam que o Mundo de Atsilut é Kéter. Nesta mesma corrente, eles associam Chochmá e Biná à Beriá. Outros afirmam que estas três sephirot compõem Atsilut. Mas o leitor que acompanhou meu raciocínio verificará que não comungo destas concepções, embora estejam, quase sempre, bem justificadas por seus adeptos. Minha compreensão é que estas forças, assim como as demais que aqui estou apresentando, estão presentes em todos os níveis que se desdobram na criação (Atsilut, Beriá, Ietsirá e Assiá - a ser apresentado na seção seguinte).

Em sequência aos desmembramentos dos triângulos, aos quais chamarei também por Tríades, apresento as forças que compõem o segundo conjunto interligado na figura que ilustra o texto sobre Beriá:
- o vértice superior é onde o aspecto masculino está em seu mais perfeito equilíbrio. O aspecto da substância, a Segunda Tríade, quando perde sua íntima conexão e integração com o equilíbrio, Primeira Tríade, oblitera, em grande parte, a força deste conjunto. Em Tiféret, cuja tradução é beleza, o aspecto masculino se apresenta segundo sua harmonia mais absoluta, a plenitude do que é existir. Esta sefirah permite um estado mental impar ao conduzir a consciência à essência do que é existir, bem como da união que enlaça tudo e a todos num só corpo;
- seguindo para o vértice direito, temos Chéssed, amor em português. Alguns autores, apropriadamente, optam por traduzir este arquétipo como misericórdia. Estamos no domínio em que a razão fria (masculino) é temperada pelo calor da emoção (feminino): ama-se o que é digno de compreensão. Interpreto esta sefirah como a responsável por extrairmos informações, forma, assimetria, em tudo em nosso universo; e
- fechando o triângulo, temos o rigorismo do racional, o masculino no seu aspecto mais arquetípico. O rigor aqui não deve ser confundido com crueldade, apenas como a fria medição e ponderação diante de qualquer situação. Isso levou os rabinos a denominarem tal singularidade de Guevurá, o que se traduz por força, embora muitos rotulam este centro de força como justiça (o que me parece mais adequado neste último enfoque).

Retomando as interpretações opcionais mais comuns, vemos estas três sephirot compondo o Mundo de Beriá, exclusivamente. Esta interpretação é dada pelos mesmo que associam Kéter, Chochmá e Biná unicamente à Atsilut.
Na terceira Tríade, o processo tem sua sequencia:
- no vértice superior temos o aspecto feminino em seu mais perfeito equilíbrio, de forma similar à Tiféret. Quando algo se manifesta nos planos inferiores, o sucesso de sua formação está inteiramente ligado ao quanto esta força se liga ao ente gerado. Sua denominação é Iessód, que se traduz por fundação. Pode-se associar esta sefirah com o plano perfeito, aquilo que fundamenta qualquer coisa.
- a direita de Tiféret encontra-se o feminino visto sob a ótica masculina, ou, em outros termos, o que faz a forma (ou a informação) existir por si só, como algo distinguível daquilo ao qual está formando. Os cabalistas a denominam como Nêtsah, cujo significado é vitória. Aqui, o calor da emoção é temperada pela razão, ou seja, algo é compreendido por ser amável.
- fechando a Tríade, tem-se Hod, que significa esplendor em português. O leitor já deve ter sentido a experiência de ser arrebatado por uma profunda emoção, que o domina e guia seus atos. Por vezes, uma simples música tem esta capacidade. Uma música, pessoa, lugar, situação funciona como um gatilho que permite a alguns um pequeno vislumbre do que representa esta força universal. É a emoção que existe por si mesma, em plena pujança. É aquilo que enlaça e define algo, submetendo-o a esta condição sem resistência e em comum consenso.

Os mesmo autores que associam Kéter à Atsilut, Chochmá e Biná à Beriá, defendem a ideia de que as sephirot de Tiféret, Chesed, Guevurá, Iessód, Nêtsah, Hod formam o Mundo de Ietsirá. Respeito mas não partilho dessa forma de pensar.

Para fechar a nova ilustração que apresentarei, há a necessidade de introduzir a décima sefirah, conhecida por Malchut. Aqui a manifestação reina, tornando a assimetria soberana no seu domínio. A substância, canalizada segundo dada forma, vai apresentar tamanho contraste que a natureza comum, o ponto de ligação entre as forças universais, fica obscurecido. Malchut, traduzido por reino ou realeza, é o extremo oposto a Kéter. A qualidade de união da criação é completamente desfocada em entes isolados em meio a multiplicidade (por vezes bastante irregular e contrastante).

A tabela abaixo traz as dez sefirot, o significado de suas denominações e a alocação dessas nos Mundos, ou Universos, nas duas interpretações que divergem da que defendo aqui: as dez sefirot presente em todos os Mundos.


Sefirot
Atributos
Mundo 1
Mundo 2
Kéter
Coroa
Atsilut
Atsilut
Chochmá
Sabedoria
Atsilut
Beriá
Biná
Entendimento
Atsilut
Beriá
Chéssed
Amor
Beriá
Ietsirá
Guevurá
Força
Beriá
Ietsirá
Tiféret
Beleza
Beriá
Ietsirá
Nêtsah
Vitória
Ietsirá
Ietsirá
Hod
Esplendor
Ietsirá
Ietsirá
Iessód
Fundação
Ietsirá
Ietsirá
Malchut
Realeza
Asiá
Asiá


Assim, Ietsirá marca o início (ou fim, dependendo do ponto de vista) das individualidades manifestas. Para aqueles que creem em anjos e demônios, almas distintas para cada ser, almas coletivas, almas gêmeas, espíritos elementares e assimilados, Ietsirá é o plano em que estes existem, interagem e comandam como seres na sua forma mais puramente concebida.

Este é o Mundo de Ietsirá. É o universo da formação.

[1] Fazendo uma analogia, podemos considerar a situação de Beriá como o coração de uma estrela: não existe matéria, ao menos na forma de átomos, ou de energia de baixa frequência, nesse centro de fusão nuclear. A gravidade desse imenso corpo celeste funde os átomos de hidrogênio e hélio que o compõe, gerando uma reação de fusão nuclear gigantesca. Átomos, ou ondas eletromagnéticas de baixa frequência, só são possíveis e identificadas a certas distâncias deste coração de pura energia: a matéria, em termos de estrutura atômica, não resiste no interior de estrelas. Os cientistas chamam este estado de plasma.

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